O Tribunal Arbitral de Paris decidiu não dar provimento ao processo aberto contra o Estado angolano pela empresa Atlantic Ventures, ligada à empresária Isabel dos Santos, que contestava a revogação da concessão do Porto do Dande à referida empresa. O Tribunal afirma que a decisão foi tomada “por unanimidade e não admite recurso a qualquer outra instância”, acrescentando “que carece de competência para decidir sobre o mérito da demanda apresentada”.
Segundo a instância judicial de Paris, três árbitros decidiram dar razão ao Estado angolano no processo, pelo que, observa, na prática a Atlantic Ventures se vê “efectivamente afastada do usufruto” da extensão de terra idealizada para a construção do Porto da Barra do Dande, província angolana do Bengo.
O Tribunal francês adianta igualmente que os árbitros não deram provimento à Atlantic Ventures para a constituição de uma zona franca, num perímetro desde a foz do rio Dande até às proximidades da zona do Capolo, em Luanda.
Além de negar provimento às pretensões da empresa e dar razão ao Estado angolano, o Tribunal Arbitral de Paris condenou também a mesma a pagar ao Estado angolano o montante de 132,8 milhões de kwanzas (203 mil euros) em compensação pelos custos causados pela arbitragem.
Na acção intentada pela Atlantic Ventures contra o Estado angolano pedia-se que o tribunal arbitral declarasse, entre outros, a nulidade do decreto presidencial em que o Presidente angolano, João Lourenço, revogou, em 2018, o diploma que oficializava o acto de favorecimento.
A Atlantic Ventures tencionava também o pagamento, pelo Estado angolano, de uma indemnização no valor de 850 milhões de dólares (752 milhões de euros).
O Ministério dos Transportes da era João Lourenço sempre refutou os argumentos da empresa privada Atlantic Ventures. Em causa estava, recorde-se, a revogação do Decreto Presidencial 207/2017, que autorizou a concessão do Porto do Dande, assinado pelo ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos, pouco antes da entrada em funções do actual Governo.
Num comunicado de Julho de 2018, o Ministério dos Transportes afirmou ser “falso” que tenha sido, de facto e de direito, concessionado a esta empresa o investimento, o desenvolvimento e a implementação do projecto do Porto da Barra do Dande. Argumentava que uma concessão implicaria a celebração do respectivo ou dos respectivos contratos de concessão.
O Governo precisa que, no caso vertente, “não foram celebrados” contratos nenhuns entre a Atlantic Ventures e as entidades públicas legalmente competentes para o efeito, como é o caso do Porto de Luanda.
Segundo o comunicado, o que havia, na presente data como na data da publicação do Decreto Presidencial 207/17, era tão-somente a intenção de implementar o empreendimento do Porto da Barra do Dande.
O Ministério dos Transportes desmentia, ainda, que a Atlantic Ventures tenha sido constituída como uma parceria incluindo investidores privados nacionais e investidores estrangeiros líderes mundiais no sector portuário, e o Porto de Luanda que, em representação do Estado, titularia 40 por cento da empresa.
Segundo o comunicado, nem Isabel dos Santos, nem quaisquer investidores estrangeiros líderes mundiais do sector portuário faziam parte da estrutura accionista da referida empresa.
O Ministério dos Transportes desmentia, também, que o Estado titule 40 por cento das acções, através do Porto de Luanda, contrariamente ao comunicado da empresa Atlantic Ventures.
Nos termos do comunicado do Governo, ficava supostamente evidente que, pelo contrário, a sociedade Atlantic Ventures “terá sido propositada e especificamente criada como intermediária para concessão do projecto do Porto da Barra do Dande”.
Tal facto, de acordo com o comunicado, “encareceria o próprio projecto, cuja execução seria feita por outras entidades estrangeiras não vinculadas ao Estado angolano, com todos os riscos de incumprimento das obrigações contratuais”.
O Ministério dos Transportes considerou grosseira e abusivamente falsa a afirmação de que, ao abrigo do Contrato de Concessão do Porto do Dande, estava prevista a implementação de uma infra-estrutura sem recurso a dinheiro do Estado, e que o projecto seria financiado inteiramente pela Atlantic Ventures.
A concluir, o Ministério dos Transportes reafirmava o seu propósito de levar a cabo um concurso público aberto e transparente, cujas peças e procedimentos estavam então a ser trabalhadas, e que seriam tornadas públicas em devido tempo.
O Presidente João Lourenço, que como ministro do anterior Governo acompanhou e subscreveu (sem qualquer rebuço) a decisão de entregar a obra à Atlantic Ventures, anunciou, em Estrasburgo, no seu discurso no Parlamento Europeu, no dia 4 de Julho de 2018, a anulação, em Angola, de contratos bilionários, com a construção e gestão de importantes infra-estruturas públicas, como o Porto da Barra do Dande.
João Lourenço justificou a medida com o facto de esses contratos não terem respeitado os mais elementares princípios da transparência e da concorrência. Isto é, o significado de “transparente” e respeitador “da concorrência” varia consoante se é ministro ou Presidente da República.
Já na sua primeira entrevista colectiva, em Luanda, no dia 8 de Janeiro de 2018, à pergunta sobre se o modelo de adjudicação praticado para o Porto da Barra do Dande iria servir para outros tipos de obras públicas, o Presidente João Lourenço respondeu: “É evidente que não”.
“Não só para outras obras públicas, mas mesmo para o caso concreto deste projecto do Porto da Barra do Dande, vamos procurar rever todo o processo, no sentido de, enquanto é tempo, e porque o projecto não começou ainda a ser executado, corrigirmos aquilo que nos parece ferir a transparência”, disse João Lourenço.
“Um projecto da dimensão como este, que envolve biliões, com a garantia soberana do Estado, não pode ser entregue de bandeja, como se diz, a um empresário, sem submissão de concurso público”, acrescentou o Presidente da República, contrariando aquela que foi a sua posição enquanto ministro.
Convocados todos os ventríloquos do MPLA
A posição relativa à construção do Porto da Barra do Dande foi oficializada numa informação enviada em Maio de 2018 aos investidores internacionais pelo Governo de João Lourenço.
No documento admitia-se que o Governo “pretende construir um segundo porto comercial nas proximidades de Luanda”, na Barra do Dande, com capacidade para movimentar 3,2 milhões de toneladas de carga por ano.
Contudo, como recorda a mesma informação, até então o Governo não emitiu a garantia do Estado aprovada pelo Presidente José Eduardo dos Santos, e refere que “ainda está em processo de avaliação dos aspectos técnicos do projecto”.
O actual porto de Luanda, o maior do país e construído no período colonial português em pleno centro da capital angolana, é propriedade do Estado angolano, mas a operação dos seus terminais estava entregue a oito empresas privadas.
O porto de Luanda movimentava (2017/18) aproximadamente 5,4 milhões de toneladas de carga por ano e recebeu obras de modernização de 130 milhões de dólares, concluídas em 2014. Antes disso, recordava o Governo, o porto de Luanda “estava altamente congestionado”, com um tempo médio de espera superior a 10 dias.
Foi noticiado em 29 de Setembro de 2017 que o Governo deveria emitir uma garantia de Estado de 1.500 milhões de dólares (1.300 milhões de euros) a favor da construção, por privados, do novo porto da Barra do Dande, face ao esgotamento da capacidade do porto de Luanda.
“O Governo pretende criar as condições necessárias para que a província de Luanda tenha um novo porto de dimensão nacional e internacional com capacidade de abastecimento para todo o país e que, estrategicamente, possa ser, também, um entreposto internacional de mercadores”, lê-se nesse mesmo decreto.
Refere ainda que o porto de Luanda, “de acordo com a evolução registada nos últimos anos nas operações portuárias” e face às “projecções de tráfego realizadas, não logrará, a curto prazo, satisfazer as necessidades de estiva e movimentação de cargas e descargas exigidas pelo comércio nacional e internacional”.
Para o efeito, foi definido pelo Governo (do qual, recorde-se, fazia parte João Lourenço), segundo o mesmo documento, o objectivo estratégico para instalação, na nova cidade do Dande (já na província vizinha do Bengo) do novo porto da capital, serviços associados e uma Zona Económica Especial, reservando para o efeito uma área total de 197,2 quilómetros quadrados e um perímetro de 76,4 quilómetros.
“O Governo considera a construção, a exploração e a manutenção do porto da Barra do Dande um empreendimento prioritário, de interesse nacional e público, considerando ainda que o empreendimento deve ser realizado com recurso a financiamento privado, de acordo com os princípios da eficiência da distribuição, partilha e gestão do risco pela parte que melhor o sabe gerir”, lê-se ainda no referido decreto.
Ficou ainda previsto que a concessão do futuro porto à sociedade Atlantic Ventures seria por um período de 30 anos, incluindo a tarefa de licenciamento, concepção, financiamento, projecto, desenvolvimento técnico e sua construção, “em associação com a autoridade do porto de Luanda”.
Transparência ontem, opacidade hoje?
A Atlantic Ventures garante que a concessão para construção e operação do porto da Barra do Dande foi feita com “total transparência” e sem violar a lei.
A empresa refere que a concessão do porto da Barra do Dande, “insere-se na concessão de serviços públicos portuários e está sujeita ao regime especialmente previsto, quer na Lei da Marinha Mercante, Portos e Actividades Conexas, quer na lei que estabelece as Bases Gerais das Concessões Portuárias”.
“Ou seja, a adjudicação da referida concessão cumpriu todos os requisitos legais à qual estava obrigada, ao abrigo da lei aplicável e respeitou escrupulosamente as leis vigentes em Angola, em todas as etapas do processo. A lei aplicável a este projecto é a lei das concessões portuárias e foi correctamente aplicada pelo anterior Executivo neste processo. A lei dos Contratos Públicos – que poderia ditar a realização de concurso público – não se aplica a contratos de concessões portuárias, ao contrário do que agora assume o actual Executivo”, garante a Atlantic Ventures.
A Atlantic Ventures salienta que, “uma vez que o valor do investimento não é pago pelo Estado”, sendo assumido pelos investidores, “não existe colateral ou garantia financeira do Estado e, por se tratar de uma concessão, a amortização do custo da obra” seria paga “com a rentabilidade da sua operação portuária, ao longo do tempo”, sem contribuir “para o agravar da dívida pública do país”.
“A lei das concessões portuárias é uma lei específica, com um procedimento próprio, que foi escrupulosamente cumprido, e, ao abrigo da mesma, foi realizada uma negociação entre o Estado e as partes que se propuseram investir, na qual foram discutidos e acordados os termos do investimento, bem como as condições que os investidores devem cumprir e o que devem pagar pela concessão ao Estado. Foi, assim, cumprido o objectivo de chegar a um resultado final que seja equitativo e equilibrado para todas as partes envolvidas”, sublinha ainda a Atlantic Ventures.
Para a empresa, esta concessão “cumpriu todos os requisitos legais aos quais estava obrigada”, garantindo que “nenhum aspecto da lei de concessões portuárias foi violada e, por isso, todos os trabalhos desenvolvidos tiveram uma base legítima e legal”.
Recorde-se que o projecto do porto da Barra do Dande foi analisado e aprovado em reunião da Comissão Económica do Conselho de Ministros, em 2017, na qual esteve presente João Lourenço, então ministro da Defesa Nacional, e que não mereceu dele a mínima dúvida ou objecção.
“Este processo foi desenvolvido com a total transparência e participação de várias entidades”, garante a Atlantic Ventures.
Para sustentar a surpresa da decisão de revogar este processo, a empresa recorda que até à revogação já tinham sido realizadas reuniões de apresentação com os administradores de todos os portos de Angola pela equipa projectista e líder mundial Royal HaskoningDHV Engineering, em representação dos investidores privados, além de outras duas reuniões técnicas com as restantes entidades envolvidas.
Foram igualmente realizadas reuniões com operadores portuários, um ‘roadshow’ para captar investimento internacional, executados projectos de engenharia, adjudicado o contrato de impacto ambiental à empresa angolana Holisticos e realizados os levantamentos dos dados oceanográficos pela empresa angolana Geosurveys.
“De realçar que, para o país, esta concessão significa ter um porto construído em 24 meses sem recurso ao Orçamento Geral do Estado, com operadores portuários a funcionar de forma eficiente, diminuindo assim os custos portuários e contribuindo directamente para reduzir os custos da importação e exportação”, concluiu a Atlantic Ventures, assumindo ainda, com desenvolvimento do novo porto e área adjacente, a criação de 5.000 novos empregos nos próximos anos.
Folha 8 com Lusa